África do Sul: um novo país que ainda tenta se livrar de velhos problemas
Baixada a poeira do fim da Copa do Mundo, podemos olhar para trás e perceber melhor a grandeza de tudo aquilo que aconteceu no último mês.
Pela primeira vez na história, a Copa do Mundo desembarcou na África. Pela primeira vez um evento de escala global pisou naquele solo. Pela primeira vez, o mais esquecido dos continentes estava no centro das atenções de todo o planeta.
Durante o último mês, as notícias que vinham da porção de terra mais pobre da Terra não eram sobre o genocídio em Ruanda, a guerra civil de Angola, as ditaduras sanguinárias de Uganda e Zimbábue, a fome da Etiópia, os piratas da Somália, o dramático alastramento do HIV por toda a África negra ou o vergonhoso regime do apartheid da própria África do Sul. Fora alguns olhares preconceituosos que apostavam no fracasso do Mundial, o que se viu foi uma verdadeira festa de confraternização com todas as cores que simbolizam a cultura africana.
Desta vez, não era o USA for Africa a cantar com uma duvidosa piedade seu “We are the World“. Foi a Shakira – também saída do terceiro mundo, mas que faz todo o mundo desenvolvido babar por ela – quem entoou, acompanhada por tambores, que esta era a vez da África. Um convite para entrarmos em contato direto com as dores e as alegrias de um país, de vários povos e de todo o continente. E para vermos futebol.
A Jabulani, de tanta personalidade que tem, só faltava mesmo falar
A participação dos Bafana Bafana traduziu toda a trajetória de seu país. Mesmo que ainda não cantem juntos como Paul McCartney e Stevie Wonder em “Ebony and Ivory“, os sul-africanos aprenderam as lições deixadas por Nelson Mandela e François Pienaar (leiam o livro, baixem e vejam o filme Invictus), mostrando que o esporte pode sim ser um fator de união para seu povo. Apesar de não terem ido muito longe, os Bafana superaram suas limitações. Embalados pelo inacreditavelmente maravilhoso e insuportável som das vuvuzelas, eles libertaram suas emoções ao marcar o primeiro gol – e o primeiro golaço – da Copa contra o México e ao lutar até o apito final pela sua classificação contra os combalidos azuis franceses.
A África também se orgulha da seleção de Gana, que igualou o resultado dos camaroneses em 1990 ao atingir as quartas, e que só foi eliminada porque os deuses – ou os demônios – do futebol resolveram dar uma pitada de drama à partida e uma “mãozinha” aos uruguaios.
Larissa e seus Riquelmes: self-marketing de enooormes proporções...
A ressurreição da Celeste Olímpica merece todo o destaque. O Uruguai é muito bem-vindo de volta ao futebol de alto nível, ainda mais por apresentar a grata surpresa – surpresa sim, porque apesar de ser um grande jogador, ninguém apostaria um tostão que ele jogaria o tanto que jogou – do bravo guerreiro Forlán. Outro sul-americano a reescrever sua história foi o Paraguai. Se não foi dessa vez que a Copa do Mundo conheceu o talento de Salvador Cabañas, os paraguaios compensaram ao mostrar ao mundo os todos os talentos de Larissa Riquelme.
A seleção da Alemanha rompeu com dois paradigmas de uma vez só. Um time cujo futebol é marcado pelo pragmatismo e classificado como “científico” foi protagonizou os momentos mais lúdicos da competição. E apesar de ser um país visto tradicionalmente como avesso a estrangeiros, apresentou uma nova geração de jovens talentosos e recheada de sobrenomes pouco ou nada germânicos, naturalizados ou filhos de imigrantes, uma representação do reconhecimento de sua própria multiculturalidade. Por sua vez, os Estados Unidos, mais afeitos ao basquete, ao beisebol e a um xará do nosso futebol, sentiram o gostinho que soccer pode proporcionar como nenhum outro esporte.
Os All Whites saíram da longínqua Nova Zelândia, terra onde reina o rugby, para sua segunda participação em um mundial. O roteiro até parece uma versão futebolística de “Jamaica abaixo de zero”, porém o time do goleiro Paston (sonho de consumo de alguns torcedores tricolores…) obteve seus três primeiros empates am Copas do Mundo e voltou para casa invicta. Entraram assim para a história como o Ameriquinha da Copa da 2010. Sem a Nova Zelândia, os esquisitões da Eslovênia herdaram parte dessa simpatia coletiva e avançaram à segunda fase nos seus uniformes à la Charlie Brown.
Destoando da empatia pública, o Stone Mick Jagger fez o papel de serial eliminator, tendo importância cientificamente comprovada nas desclassificações da Inglaterra, dos Estados Unidos e do Brasil. Dizem as más línguas que ele torceu para a Argentina também…
Outros personagens surgiram, como simpático polvo Paul, alheio a tudo que acontecia do lado de fora do seu aquário. Por muito pouco o pobre não foi parar em uma panela pelo simples crime de sucumbir à sua gula e ir buscar seu petisco, este que só podia ser alguma sacanagem do seu tratador, estava vindo dentro de caixas chatíssimas de se abrir. Menos mal que ele tornou-se o molusco favorito em toda a Espanha.
O que dizer então da campeã Espanha? Uma seleção que lutou contra seu estigma de eterna coadjuvante nas Copas, a despeito de suas várias gerações de jogadores talentosos, e que no final, conseguiu a proeza de unir catalães, bascos e madrilenhos em uma mesma vibração, sob a mesma bandeira, esquecendo pelo menos por alguns momentos de todas as diferenças.
Espontâneo e inesperado: assim é o amor
Além disso, houve beleza na redenção de Iker Casillas. O goleiraço, que seria execrado em caso de fracasso pela imprensa marrom espanhola por “perder a concentração pela proximidade de sua namorada-repórter”, levou apenas dois míseros gols em todo mundial e foi um dos grandes responsáveis por tirar a Fúria de uma fila que parecia eterna. O beijo em sua musa-entrevistadora foi ao mesmo tempo demonstração de carinho e tapa com luvas de pelica naqueles tolos que pensam que o amor atrapalha o homem. Ao contrário, o amor está sempre na moda.
Mesmo sem ter nada contra os nossos hermanos argentinos, foi melhor assim. Muito melhor do que ver o Maradona pelado.
Tivemos o privilégio de assistir a uma Copa em que a estrela principal deixou de se chamar bola; ela se chamou Jabulani, que muito convenientemente, significa “celebrar” no dialeto zulu. Presenciamos mais uma vez o esporte como a encarnação do que o ser humano tem de melhor, em todos os ângulos, câmeras, imagens em super-slow. Por cada grito de vitória, por cada choro, por cada dança de comemoração e por cada olhar perdido na derrota, bendita seja a celebração do futebol.
E bendita seja a África. O continente é o berço da humanidade e merece entrar de vez no nosso mapa-mundi, não apenas como cenário de safáris e fornecedor de diamantes de sangue. A África é a morada de gente que ri, chora e sente como nós, mas que sofre de privações das quais não temos a menor ideia, tantos foram os séculos de exploração e de abandono a que foram submetidos. Que a partir de agora, aprendamos a enxergar a África como uma parte do nosso mundo e de nós mesmos.
Paul agora quer férias no Caribe e só pretende voltar a trabalhar em 2014. Nenhum polvo foi prejudicado durante a produção deste post.